O Incêndio do Gran Circus Norte-Americano
O dia em que o circo ardeu… e um homem decidiu semear gentileza entre as cinzas
Niterói, 17 de dezembro de 1961.
O céu escurecia, mas não era a noite que chegava, era a fumaça.
Às 15h45 daquela tarde, o picadeiro estava montado: um espetáculo para mais de três mil pessoas, crianças risonhas, famílias inteiras, o brilho de uma cidade que, finalmente, receberia o famoso Gran Circus Norte-Americano.
Mas ninguém sabia que, naquela lona, não se aplaudiriam palhaços nem domadores e sim, gritos.
O Gran Circus Norte-Americano irrompeu em Niterói sob um céu denso, em 15 de dezembro de 1961. Sua chegada foi anunciada com fanfarras grandiosas: o maior e mais completo circo da América Latina. Mas por trás da lona reluzente, escondiam-se presságios que ninguém ousaria ler. Sessenta artistas, vinte empregados, cento e cinquenta animais e a promessa de espetáculo sob uma nova lona, pesando seis toneladas, feita de náilon, ou assim diziam os cartazes.
Uma semana antes da estreia, o circo ancorou-se como uma fera adormecida na praça Expedicionário, avenida Feliciano Sodré, coração palpitante da cidade.
Mas, o que parecia festa logo foi se tingindo de sombra.
O espetáculo interrompido
A estrutura do espetáculo exigia tempo, suor e muitas mãos. Danilo Stevanovich, proprietário e senhor desse reino itinerante, contratou cerca de cinquenta trabalhadores avulsos. Entre eles, Adílson Marcelino Alves, um nome que logo seria murmurado com horror: “Dequinha”. Furtos passados, mente perturbada, dois dias de serviço apenas, e depois... o corte, a demissão fria de Stevanovich. Dequinha não aceitou. Passou a vagar em torno do circo, como um cão ferido, ou como um espectro esperando sua hora.
Na noite da estreia, a plateia transbordava: três mil almas comprimidas sob a lona tensa. Stevanovich, temendo o excesso, suspendeu a venda de ingressos. Lá fora, na escuridão que circundava as luzes, Dequinha tentou infiltrar-se sem pagar, mas foi barrado com firmeza pelo domador de elefantes, Edmilson Juvêncio. Mais uma humilhação. Mais um motivo.
Na manhã seguinte, 16 de dezembro, Dequinha seguia orbitando o circo, agora provocando o arrumador Maciel Felizardo, sempre acusado de ter causado sua demissão. As palavras afiadas logo se tornaram golpes: Felizardo o agrediu, e Dequinha, com os olhos incendiados, jurou vingança.
No entardecer do dia 17 de dezembro, os fios da tragédia foram entrelaçados. Dequinha encontrou-se com José dos Santos, “Pardal”, e Walter Rosa dos Santos, “Bigode”. Em um lugar chamado Ponto de Cem Réis, na divisa entre o bairro Fonseca e o centro da cidade, selaram o pacto macabro: incendiar o circo. Houve uma voz de cautela, um dos cúmplices advertiu: o circo estava lotado, a tragédia seria monstruosa. Mas Dequinha, já entregue ao abismo, não recuou. “Stevanovich me deve uma grande dívida”, repetia, como um mantra sombrio.
Às 15h45, com o espetáculo quase no fim, a trapezista Nena, Antonietta Stevanovich, irmã de Danilo, percebeu primeiro: uma língua flamejante irrompia no céu de lona. O pânico foi imediato. Em cinco minutos, as chamas consumiram tudo: palco, arquibancadas, cordas, sonhos. Três mil pessoas tentaram escapar de uma boca incandescente. Trezentas e setenta e duas morreram ali mesmo. Com a chegada dos socorros, o número de mortos ultrapassou quinhentos, e a maioria, crianças.
Houve, contudo, uma ironia cruel no meio da carnificina: o elefante Sema, em um acesso instintivo de fúria e medo, rompeu sua jaula e rasgou a lona. Por esse rasgo, centenas fugiram, atravessando o véu de fogo. A tão divulgada lona de náilon? Não passava de algodão embebido em parafina, combustível perfeito para o inferno que se instalou.
Como se não bastasse, a cidade agonizava em outro infortúnio: naquele dia, a classe médica do estado estava em greve. O Hospital Antônio Pedro, o maior de Niterói, mantinha suas portas cerradas. Mas o desespero não respeita fechaduras: a população arrombou as entradas, médicos foram convocados às pressas pelas ondas do rádio, soldados do Exército irromperam para ajudar. Médicos de clínicas privadas acorreram. Circos, cinemas, teatros. todos silenciaram seus espetáculos, vasculhando entre os espectadores se algum deles poderia prestar socorro. A dimensão da tragédia transcendia o palco.
Padres vieram às pressas, não para assistir, mas para conceder a unção derradeira, a extrema-unção, àqueles cujo destino já estava selado pelo fogo. Nos dias seguintes, a elite do estado e do país rumou até a cidade enlutada. Entre eles, o próprio presidente João Goulart.
As agências funerárias, atônitas, não davam conta. O Estádio Caio Martins transformou-se em oficina de morte: carpinteiros trabalharam noite e dia, produzindo caixões em série, enquanto os cemitérios municipais se saturavam. A terra de São Gonçalo, município vizinho, foi aberta às pressas, convertida em cemitério improvisado, para acolher os corpos restantes.
A polícia não demorou a cerrar o cerco. Relatos de funcionários apontavam Dequinha: ele havia ameaçado, ele rondava, ele odiava. Foi preso em 22 de dezembro de 1961, junto aos comparsas “Bigode” e “Pardal”.
A Justiça seguiu seu curso, mas nada poderia restituir as vidas ceifadas. Em 24 de outubro de 1962, Dequinha foi condenado: dezesseis anos de prisão, acrescidos de seis anos de internação em manicômio judiciário. Um destino selado? Não.
Onze anos depois, em 31 de janeiro de 1973, ele fugiu da Penitenciária Vieira Ferreira Neto, em Niterói. Pouco depois, seu corpo foi encontrado: treze tiros no alto do morro Boa Vista. Ninguém, jamais, foi responsabilizado.
“Bigode” recebeu sua pena: dezesseis anos, mais um ano na colônia agrícola. “Pardal”, quatorze anos, acrescidos de dois também na colônia.
E o circo? Queimou não apenas sua lona, mas uma cidade inteira, deixando cicatrizes que jamais o tempo ou o esquecimento conseguiram apagar.
E você... ousaria entrar num picadeiro outra vez, sabendo o que o riso pode ocultar?
Cenas do pós-fogo: um cemitério improvisado
A comoção foi tanta que o Cemitério do Maruí, em Niterói, não deu conta dos corpos.
Crianças carbonizadas, muitas sem possibilidade de identificação, foram sepultadas juntas, em valas coletivas.
Pais enterrando filhos.
Famílias inteiras que desapareceram sob as cinzas.
O Gran Circus, em poucos minutos, deixou de ser espetáculo e virou ruína.
Não havia mais risos.
Só dor.
Só um terreno calcinado.
Só ausência.




E então… ele surgiu
Entre as cinzas, entre os escombros físicos e emocionais, um homem apareceu.
Seu nome: José Datrino.
Mas poucos o conheceriam assim.
Ele viria a ser chamado, simplesmente, de Gentileza.
Na manhã seguinte à tragédia, José Datrino teve uma visão:
“É preciso plantar bondade onde só há dor”.
Sem avisar a ninguém, abandonou a família, o trabalho, a vida comum…
E caminhou até o local da tragédia.
Ali, começou a erguer um jardim de flores e árvores, uma espécie de memorial espontâneo para os mortos.
Enquanto cavava a terra negra, dizia:
"Aqui brotará a gentileza, para que nunca mais a violência floresça."
Niterói assistia, perplexa, àquele homem simples, de olhar compassivo e barba espessa, que se tornaria, com o tempo, uma figura folclórica, profética e incômoda.
Por meses, permaneceu entre os escombros, cultivando a terra marcada pela morte.
E, dali, partiu para sua missão definitiva: "Gentileza gera gentileza".
Um mantra.
Uma cicatriz transformada em prece.




A cidade que não esquece
O incêndio do Gran Circus nunca foi apagado da memória de Niterói.
Ergueu-se um memorial no local, mas muitos dizem que o verdadeiro monumento está nas pilastras pintadas por Gentileza, espalhadas pelo Rio de Janeiro.
São seus murais, grafados com letras tortas, mensagens repetidas como mantras obsessivos, que mantêm viva a lembrança da tragédia e do renascimento.
O homem que viu flores onde ninguém via mais nada.
Gentileza: profeta ou louco?
Por anos, José Datrino perambulou pelas ruas do Rio de Janeiro, vestido com túnicas brancas, anunciando sua filosofia.
Alguns o chamavam de "maluco".
Outros, de "santo".
Poucos souberam, ou quiseram saber, que tudo começara com o incêndio do circo.
Com as crianças carbonizadas.
Com a ideia de que só a gentileza poderia responder ao horror.
Um homem que não suportou olhar para o abismo… e decidiu semear flores sobre ele.
As cinzas não esfriam
Hoje, quem passa por Niterói pode ver, na Rua Visconde do Rio Branco, o memorial com a lista dos mortos.
Mas poucos sabem que, naquele solo, arde ainda uma cicatriz invisível.
Que cada flor que brota ali está enraizada em dor.
E que, das chamas mais intensas, às vezes, surge um homem que escolhe ser luz… mesmo que todos o chamem de louco.
José Datrino morreu em 1996.
Mas o incêndio… esse, jamais foi apagado.
Nem as palavras:
“Gentileza gera gentileza.”
Ou… será que não?
E você…
teria coragem de visitar o solo calcinado onde flores nasceram?
Ou prefere manter distância das brasas que o tempo insiste em reacender?
O que mais o silêncio dessa história esconde?
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